Acompanhe a saga de uma pessoa que tem de passar dois dias inteiros sem celular, elevador, cartão bancário, micro-ondas e outras comodidades. Posso ser classificada como mediana quando o assunto é tecnologia. Não sou viciada nela, nem tampouco tenho fobia. Por isso, achei que ia tirar de letra ficar dois dias sem qualquer aparelho que tivesse botõezinhos. A primeira dificuldade apareceu já na hora de definir o que é tecnologia. Tudo bem abrir mão do micro-ondas para esquentar o leite pela manhã. Mas o fogão também tem lá seus componentes tecnológicos, certo? E não é seguro acender uma fogueira dentro de casa. Cheguei a um acordo comigo mesma: ficaria de fora dos meus dois dias tudo o que fosse ligado na tomada ou dependesse de energia em algum momento para funcionar. Pareceu justo e assim, finalmente, parti para minha desintoxicação. Comecei num domingo...
1º DIA, de manhã
Foi ótimo acordar sem o rádio-relógio, que ficou desligado desde a noite anterior, e melhor ainda não saber que horas eram. O resultado é que fiquei na cama até mais de dez horas da manhã. No café, esquentei o leite no fogão, aceso com o fósforo, claro. Na minha tentativa de ser saudável pelo menos no final de semana, vesti a roupa de ginástica e, enquanto escovava os dentes, me lembrei: nada de subir na esteira elétrica da academia do prédio. Desci seis andares de escada e fui caminhar na rua.
Delícia! Na volta, pela primeira vez, me senti no tempo das cavernas. Subir seis andares depois de caminhar quase uma hora?! Não vai dar. Bom, como não podia ficar no saguão do prédio, teve que dar. As pernas doíam, de verdade, e o ar parecia que, de repente, havia sumido da face da Terra. Com muita força, subi e sentei na varanda do apartamento para tomar fôlego. Tomei um belo banho. Ufa, o chuveiro é a gás, não tem eletricidade. Sem micro-ondas, faca elétrica, timer (e talento) não daria para fazer nada, descongelar nada para o almoço. Foi fácil convencer meu marido e meu filho a comer fora. Engraçado, a nossa escolha foi um restaurante japonês. Eu só me dei conta quando estava com os pauzinhos na mão: talvez seja a forma mais primitiva de alimento consumido hoje, tudo cru.
1º DIA, de tarde
O primeiro sinal de pânico surgiu enquanto eu estava comendo, lá pelas 13 horas. E se alguém precisasse falar comigo? Eu estava totalmente isolada do mundo. Por uma colaboração inesperada e indesejada da companhia telefônica , fiquei sem o sinal do telefone fixo por vários dias. E o celular lá, morto, desligado. Meus pais, idosos, talvez precisassem de alguma coisa, algum amigo talvez quisesse me convidar para um passeio (depois, descobri que isso tinha acontecido mesmo), a gerente do banco podia estar tentando me ligar para avisar que meu título de capitalização fora sorteado. Já em casa, tinha de escolher algo para fazer com meu filho de 5 anos. Cinema não podia, tem tecnologia embutida naquela película colorida. Teatro! Ah, pode. Nada mais absolutamente humano. Peguei o carro - meios de transporte estavam liberados, como combinei desde o início - e lá fomos nós. Xii, o dinheiro estava prestes a acabar. Tudo bem, tem caixa eletrônico em qualquer esquina. Foi aí que me dei conta de que caixa eletrônico é a mais pura tecnologia. Comecei a contar as notinhas que estavam na carteira e iniciei ali mesmo, na porta do teatro, um período de contenção de despesas. Na volta para casa, uma barreira: o portão eletrônico do prédio. Foi facilmente transposta com três buzinadinhas.
1º DIA, de noiteNo lanche, pão com queijo e presunto. Nada de pizza, não podia usar o telefone para pedir, nem o cartão para pagar, e o dinheiro praticamente tinha acabado. Por volta das 21 horas, senti falta da televisão pela primeira vez. Tinha a continuação de um episódio inédito de Monk - minha série favorita e tradição aos domingos -, no qual seria revelado por que sua mulher morrera, mistério que percorre toda a trama. Tudo bem, dois dias depois eu olharia na internet. Como não podia assistir à TV, terminei de ler a revista de cultura do jornal e dei um bom adianto na biografia do Paulo Coelho, de Fernando Morais, que estava largada no meu criado-mudo há mais de uma semana. Paulo Coelho ainda recebe cartas em papel, muitas. É legal receber cartas escritas em papel, algo que nenhum e-mail, SMS, ou ligação pelo Skype pode substituir. Anoto, à mão, algumas emoções do meu dia sem tecnologia para poder escrever o texto depois. Bom, quase hora de dormir e uma grande preocupação aparece: como vou acordar amanhã, sem rádio-relógio? Seria segunda-feira e, dessa vez, não poderia ficar na cama até a hora que quisesse.